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Socorro, tiraram o goleiro!

Vista de Porto Alegre a partir do Centro Histórico, no sentido norte-sul | Foto: Jossiano Leal / Pixabay

Pedro Xavier de Araújo*

A eliminação de etapas de licenciamento de projetos e obras coloca em risco a sociedade, a vida urbana e os profissionais.

As cidades são organismos complexos, em constante transformação. Arquitetos costumam referir-se a elas como obras coletivas — sempre inacabadas e construídas, na maioria das vezes, sem um projeto prévio. Nesta complexa teia, as atitudes de cada um refletem e geram impacto no sistema como um todo. Nossas decisões e forma de viver na cidade interferem na vida dos demais.

Existem alguns mecanismos para garantir que a soma dessas intervenções individuais favoreça o conjunto ou que, pelo menos, evite que a vida nas cidades se torne insustentável e impraticável. As fórmulas são diversas e variadas: das regras extremamente rígidas e detalhadas, presentes em várias capitais europeias, ao liberalismo urbano de algumas metrópoles estadunidenses. O certo é que alguns elementos mínimos são necessários, como a pactuação de regras gerais e a fiscalização do cumprimento delas por parte do Estado.

No Brasil, esse conjunto básico de regras é definido no Plano Diretor Municipal e legislações complementares. É o instrumento que busca garantir que nossa obra coletiva melhore ao longo do tempo, trazendo mais qualidade para a vida de todas e todos; obras e intervenções nas cidades precisam respeitar as regras ali definidas.  Por isso, o Plano Diretor deve ser elaborado de forma participativa e democrática, sendo revisado periodicamente, dando oportunidade à reavaliação de regras e seus efeitos sobre a cidade.

Mas a elaboração do Plano Diretor não garante por si só o seu cumprimento, da mesma forma que a publicação de leis não garante que todos irão respeitá-las. Assim, antes de construir, é necessário apresentar os projetos ao poder público para verificar o atendimento da legislação e autorizar o início das obras, ou propor os ajustes necessários. Essa etapa de análise prévia por parte dos órgãos públicos é chamada de licenciamento.

Embora fundamental para a segurança de todos e para a garantia do cumprimento da legislação, o licenciamento tem recebido críticas de profissionais que atuam no setor da construção civil devido à lentidão dos processos, falta de clareza quanto às regras e a possíveis exageros, quando se detém sobre detalhes. Estas situações têm levado segmentos da sociedade a pressionarem o poder público por maior celeridade, clareza e modernização de processos. Porém, as respostas que estão surgindo são preocupantes: ao invés de qualificar o licenciamento, órgãos públicos têm eliminado etapas ou mesmo substituído as análises por autodeclarações emitidas pelos autores dos projetos. Ou seja, o profissional declara que cumpriu as regras, e o poder público aprova os projetos sem analisá-los.

Propostas e alterações deste tipo passaram a surgir nos diferentes entes federados. Em dezembro de 2020, o Ministério da Economia publicou a Resolução CGSIM nº64/2020 que prevê, entre outras coisas, a dispensa de licenciamento urbanístico para construções consideradas de baixo risco. A resolução foi revogada em março de 2021, mas o bode já estava na sala. O Rio Grande do Sul também incluiu a modalidade de Licença Ambiental por Compromisso (LAC) na revisão do Código Ambiental, em 2020. Porto Alegre não ficou para trás e instituiu, por decreto, a modalidade do “Licenciamento Expresso” e, mais recentemente, o Licenciamento Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC – Decretos Municipais nº 20.613/2020; 21.014/2021; e 21.393/2022). Em ambos os casos, as licenças são emitidas a partir da apresentação de projetos e declarações por parte do proponente, sem análise técnica dos órgãos competentes. Diversos municípios gaúchos vêm adotando medidas semelhantes.

As transformações vêm na esteira da inflexão ultraliberal observada nos anos recentes. Desde a abrupta guinada política representada pelo impeachment em 2016, bandeiras históricas como a defesa do direito à cidade, à moradia e ao meio ambiente vêm perdendo espaço e atenção das administrações públicas. Preceitos e diretrizes da política urbana conforme estabelecem o Estatuto da Cidade e a Constituição Federal passaram a ser desvalorizados. Em seu lugar, têm sido privilegiadas propostas de flexibilização ou eliminação de regras urbanísticas. Em outras palavras, as administrações têm deixado de lado uma agenda de ampliação de direitos e qualidade de vida para a população, e abraçado bandeiras dos setores ligados à construção civil.

Essa agenda parte do suposto de que o licenciamento e o regramento urbanístico seriam entraves para o desenvolvimento econômico, e de que o crescimento econômico é prioritário com relação a outras questões como a própria segurança da população. Este ideário ficou muito bem ilustrado nas infelizes manifestações do ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, que, em abril de 2020 defendeu que o governo aproveitasse a oportunidade da pandemia para efetuar fortes mudanças em regras de proteção ao meio ambiente. Na visão do ex-ministro, a pandemia era uma oportunidade única, pois a população e a imprensa estavam preocupadas com a situação sanitária e com a proteção de suas vidas, e não dedicariam resistência às transformações. O ex-ministro defendeu que era o período ideal para passar a boiada, referindo-se às flexibilizações normativas. O movimento social urbano passou a chamar as propostas desta natureza que se tornaram cada vez mais frequentes no país de boiadas urbanísticas.

Esse fato ilustra com rara clareza e crueldade o ideário por trás dessas propostas. O debate e as divergências sobre as políticas públicas são sempre muito saudáveis, mas dentro de determinados limites. Não devemos nunca colocar a sociedade em risco.  No caso da eliminação das análises técnicas para o licenciamento, a situação é muito grave, pois expõe a população a obras cujo impacto não foi avaliado, e os profissionais autores dos projetos a responsabilidades vitalícias que exorbitam suas atribuições. 

Ocorre que os problemas do licenciamento não se limitam à morosidade, falta de clareza ou rigor excessivo. O contrário também acontece: situações em que o licenciamento é displicente e acaba autorizando obras ou atividades que geram grande impacto e prejuízos à população. Um caso exemplar é o ocorrido em Maceió (AL), onde a extração de sal-gema por parte da empresa Braskem causou rachaduras e instabilidade em bairros que precisaram ser inteiramente evacuados e interditados. Outras tragédias semelhantes são amplamente conhecidas no Brasil, infelizmente.

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS) tem procurado debater a fundo a questão e emitiu uma manifestação pública a respeito com o título: “Melhorar o licenciamento sim, acabar com ele não”. Faço coro à manifestação do CAU/RS e aproveito a oportunidade do presente ensaio para ampliar o debate com a sociedade. É desejável a qualificação dos processos de licenciamento, bem como a definição de padrões mínimos unificados em escala nacional, estadual e regional. Os processos devem ter regras mais claras e públicas, facilmente acessíveis e compreensíveis, para que qualquer profissional possa utilizá-las adequadamente, independente do município onde esteja trabalhando. São bem-vindas as tecnologias disponíveis que possam conferir maior celeridade e praticidade.

No documento, o Conselho estabelece limites importantes ao debate, como a manutenção do licenciamento com atividade pública e de Estado, e a responsabilização excessiva dos autores dos projetos. Pela sua natureza, a atividade do licenciamento não é passível de terceirização ou privatização. Sendo a cidade construída por uma multiplicidade de atores com seus interesses particulares – e muitos deles conflitantes entre si –, somente o Estado tem condições de defender o interesse público, mediando os conflitos entre as partes. Essa tarefa não pode ser delegada a empresas ou profissionais que possuem seus interesses particulares e estão submetidos a outras pressões, sem contar com a isonomia que somente o Estado possui.

Também não é possível transferir aos autores dos projetos responsabilidades que exorbitam suas atribuições, e que cabem ao poder público, como propõe as modalidades autodeclaratórias. Alguns profissionais que esperam ver seus projetos aprovados com celeridade chegam a comemorar a novidade, enxergando supostos ganhos de tempo. Não percebem, porém, as graves responsabilidades que estão assumindo. Nessas modalidades, os ajustes que usualmente são solicitados pelo poder público na etapa de projeto irão aparecer após a obra concluída, na etapa do Habite-se(1). Como se comporta o poder público quando identifica que a obra não respeita a legislação? É possível que a sociedade tenha que conviver com edifícios inseguros e que não cumprem a legislação, ou que o Responsável Técnico seja orientado a demolir ou reformar parcialmente as obras recém-concluídas. A situação é ruim para o poder público, para o profissional e para a cidadania, num jogo em que todos perdem.

Como defende o CAU/RS, o licenciamento não pode ser tratado como um entrave para o desenvolvimento econômico. Trata-se de um instrumento a serviço do planejamento urbano e dos interesses coletivos. A sua eficiência não pode ser medida exclusivamente pela agilidade dos processos, e sim na garantia do respeito às diretrizes do planejamento urbano e aos critérios urbanísticos definidos na legislação.

Todo o regramento urbanístico e de edificações, bem como o licenciamento de projetos, existe para garantir a segurança da população, para preservar os interesses coletivos. Todos queremos viver em cidades e construções seguras e de qualidade. Neste país, já testemunhamos tragédias suficientes para aprender o que acontece quando as pressões do setor econômico se sobrepõem às medidas de segurança e proteção social. No caminho que estamos indo, a sociedade está em risco. Como sugere a metáfora do título do ensaio, estamos jogando sem goleiro!


(1)  Habite-se, ou Carta de Habitação é a licença expedida pelo poder público autorizando o início da utilização efetiva de construções, garantindo que a obra está pronta para ser habitada e que foi construída ou reformada conforme a legislação vigente.

*Pedro Xavier de Araújo é arquiteto e urbanista da FASC, conselheiro do CAU-RS e diretor do SAERGS

 

Este artigo foi originalmente publicado na edição de 03 de setembro de 2022 do Matinal Jornalismo.

 

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