João Roberto Meira
Biólogo – SMAMUS
Há cerca de treze meses, enquanto aprendíamos a usar máscaras e sonhávamos com uma vacina que ainda não chegou para a maioria da população brasileira, em reunião ministerial, no dia 22 de abril de 2020, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles manifestou seu particular senso de oportunidade frente à catástrofe que se instalava, com a seguinte frase:
“Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas.”
O desejo confesso, tornado público por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), obteve importante incentivo e cumplicidade, em conceito e método, no Plenário da Câmara dos Deputados, nos dias 12 e 13 de maio de 2021.
Em regime de urgência, o relatório do Projeto de Lei (PL) nº 3.729/2004, de autoria do deputado Neri Geller (PP-MT), integrante da bancada ruralista federal, foi aprovado com 300 votos favoráveis e 122 contrários, sendo todas as emendas rejeitadas.
No conceito do ministro, o momento deveria ser de grande tranquilidade para o intento – mais de 430 mil almas perdidas para o vírus, falta de vacinas e insumos para produzi-las, atrasos nos cronogramas de vacinação e uma comissão parlamentar de inquérito instalada para investigar o conjunto de ações e omissões que nos levaram ao trágico podium de má gestão da pandemia.
Mudar todo o regramento ambiental, simplificar as normas e “ir passando a boiada” tem materialidade literal no projeto que agora segue para o Senado Federal, uma vez que nega o impacto ambiental e social de diversas atividades reconhecidamente impactantes, confunde simplificação com reducionismo e pretende impor o silêncio e a subjugação da matriz social e natural em benefício de poucos atores e setores que se impõem e se elegem por força econômica.
Ocorre que a natureza não se submete à economia. As regras do licenciamento ambiental existem justamente para equacionar ou evitar conflitos gerados pelas políticas de desenvolvimento ou da instalação e operação de empreendimentos, os quais se orientam fundamentalmente pela ótica econômica sem considerar e contrabalançar adequadamente os impactos ambientais e sociais gerados. Negar a matriz da natureza e da sociedade pode ser conveniente a alguns, mas ao coletivo da sociedade consiste somente em imprudência.
Quando se examinam as justificativas do PL nº 3.729/2004 e seu conteúdo, constata-se que o mesmo se baseia no senso comum, parte de algumas premissas anacrônicas ou falsas e aposta em soluções duvidosas, tais como a isenção de licenciamento para diversas atividades impactantes, o licenciamento por adesão e compromisso e a ênfase na solução de fiscalização, em vez do planejamento, diagnóstico e prognóstico.
Grande parte do senso comum tem o licenciamento ambiental como um entrave às políticas de desenvolvimento, ao invés de considerá-lo como elemento de qualificação. Infelizmente, esse entendimento é repetido à exaustão por muitos políticos e formadores de opinião, e serve para justificar o atraso de obras e a incapacidade de atrair empreendimentos por outras razões.
Trata-se, na verdade, de uma simplificação que não se sustenta na realidade dos fatos e geralmente esconde inviabilidade econômica, ausência de variável ambiental incorporada nos projetos, falta de planejamento elementar, má gestão, diagnósticos socioambientais e econômicos precários ou inconsistentes, projetos inviáveis ou ausência de infraestrutura.
A crença de que o licenciamento ambiental é demorado e, por isso, é necessário diminuir os prazos do licenciamento ambiental, simplificar os procedimentos e dar mais segurança jurídica aos empreendedores, é frequentemente pronunciada nas campanhas e debates eleitorais quando a pauta ambiental emerge. Já as iniciativas para pôr em prática essas ideias, geralmente carregam contradições intrínsecas, muitas vezes construídas sem conceitos claros, acabando por gerar mais insegurança jurídica.
Boa parte dessa fama tem origem nas judicializações a que muitas obras de licenciamento ambiental foram submetidas antes da vigência da Lei Complementar nº 140/2011, a qual estabeleceu as competências para o licenciamento ambiental entre os entes federados.
Até então a judicialização dos processos de licenciamento ambiental se dava majoritariamente por disputas e/ou alegações de conflitos de competência entre os órgãos licenciadores. A questão não era o licenciamento ambiental das obras em si, mas quem iria licenciar a obra – a União, o Estado ou o Município. Ou seja, grande parte da justificativa utilizada pelo relator já fez certo sentido há uma década, mas hoje é anacrônica.
O problema central era, portanto, a ausência de regulamentação do artigo 23 da Constituição Federal por falta de prioridade e consenso na Câmara Federal, mas, como o tema era relativamente complexo de entender e explicar, o mais fácil era culpar o licenciamento ambiental lato sensu pelos atrasos, e essa falsa ideia se consolidou no imaginário nacional.
O projeto de lei se desenvolveu, portanto, a partir de premissas centrais falsas e, ao pretender proporcionar segurança jurídica para várias atividades e simplificar os licenciamentos por soluções administrativas genéricas, poderá, ao contrário, gerar novos contingentes de judicializações, de ações fiscais e inquéritos civis de toda sorte.
Se materializado em Lei, na forma que se apresenta até então, sua aplicação impactará, direta e indiretamente, no curto, médio ou longo prazo, o ar, as águas, florestas, campos, entre outros ecossistemas, afetando a vida dos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais, pequenos agricultores, enfim, a qualidade de vida de todos nós, criando novas primaveras silenciosas, como previa Rachel Carson, já em 1962.
Um projeto desta importância não poderia ser jogado ao regime de urgência sem uma ampla discussão qualificada, com vários setores e atores da sociedade, pois não é responsável propor alterações que venham a atender as expectativas e anseios de apenas alguns setores em detrimento de outros, que não estão minimamente representados no legislativo federal e serão fortemente afetados pelas mudanças previstas.
Nove ex-ministros do meio ambiente, de diferentes partidos, se manifestaram contrariamente à proposta, assim como inúmeras organizações da sociedade civil e de representantes da academia, dentre elas, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
Entre as inúmeras críticas, alerta-se para o risco de surgirem “guerras ambientais”, à semelhança das guerras fiscais que ocorrem entre os estados, e o agravamento da situação de isolamento do Brasil no cenário internacional, com severas consequências, comerciais, econômicas, sociais e ambientais, e frente a este conjunto de riscos a sociedade brasileira não pode silenciar.
Excelente matéria!
Artigo excelente e mais do que oportuno. Satisfação compartilhar a profissão com um Biólogo com a lucidez e clareza do autor. Parabéns
Ótimo artigo, escrito com lucidez e sensibilidade!
Parabéns João Roberto!