Arnaldo Luiz Dutra – arnaldoluizdutra@yahoo.com.br – Engenheiro do DMLU, Ex-presidente da Companhia Riograndense de Saneamento – CORSAN e membro do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento – ONDAS
Antes que a globalização e o neoliberalismo invadissem o mundo, transformando tudo em mercadoria, tratando de fazer com que tudo tenha preço, se venda e se compre, os professores usavam o exemplo da água para diferenciar, nas aulas, o que tem valor de uso, mas não valor de troca, porque as pessoas têm acesso livre a elas. Quem diria que poucas décadas de liberalismo tenham feito da água razão de tal cobiça econômica, que o relatório do Banco Mundial, publicado em agosto de 95, já alertava para o risco de guerras por causa de água. “Muitas das guerras deste século foram fruto da disputa pelo petróleo. As do próximo século serão causadas pela luta por água”, dizia o relatório. Diante do atual contexto, as vésperas de comemorarmos mais um Dia Mundial da Água, em 22 de março, esta reflexão torna-se ainda mais necessária.
A data passou a ser observada a partir de 1993, de acordo com as recomendações da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento contidas no capítulo 18 (sobre recursos hídricos) da Agenda 21. Os países foram convidados, a dedicar o dia a atividades concretas para promover a sensibilização da opinião pública por meio de publicações e difusão de documentários e a organização de conferências, mesas redondas, seminários e exposições relacionadas à conservação e desenvolvimento dos recursos hídricos e à implementação das recomendações da Agenda 21.
A água, apesar de abundante, tem apenas uma pequena fração que é doce e apropriada para o consumo humano, além de estar distribuída de forma desigual pelo planeta. Assim, o modelo de gestão da água, público ou privado, subordinado à natureza humana ou aos interesses do capital é o debate mais relevante. A mesma água que garante a vida potencializa conflitos e disputas quando vista como fonte de lucro e de riqueza.
Em nossa memória recente está o episodio conhecido como Guerra da Água de Cochabamba, terceira maior cidade da Bolívia, ocorrido entre janeiro e abril de 2000. Ainda nos anos 90, o Banco Mundial exigiu, para a renovação de um empréstimo de 25 milhões de dólares, a condição de que fossem privatizados os serviços de água do país mais pobre da América do Sul. Quando foi privatizado o serviço de água de Cochabamba, vendido à poderosa empresa estadunidense Bechtel, o preço da água aumentou brutalmente já nos dois primeiros meses.
Numa clara resposta da sociedade civil, milhares de bolivianos tomaram as ruas de Cochabamba para protestar contra o aumento dos preços e os cortes feitos pela empresa junto aos devedores. O movimento desembocou em uma greve geral que paralisou a cidade, e obrigou a empresa americana a deixar o país. A título de indenização por perda de lucros, a empresa apresentou ao governo boliviano uma fatura de 25 milhões de dólares.
No Brasil, em tempos de retrocessos, a Lei nº 14.026, sancionada pelo presidente em 15 de julho de 2020, batizada pelos seus defensores de “novo marco regulatório do saneamento”, abre mercado para a iniciativa privada, estabelecendo limites e vetos para arranjos entre entes públicos. Na prática, substitui as parcerias públicas firmadas entre estados e municípios para o provimento de serviços de saneamento por concorrências para concessões abertas a empresas privadas. Esse novo arranjo coloca o País na contramão de uma tendência global de reestatização. Um relatório do Transnational Institute, publicado em 2017, revelou que, após traumáticas experiências, 180 cidades no mundo, dentre as quais Paris e Berlim, haviam revertido a privatização de seus serviços de abastecimento de água. Entre as razões, estavam à piora nítida dos serviços e o aumento acentuado das tarifas, ambas ditadas pela necessidade de gerar lucros para os acionistas.
A pandemia trouxe contornos ainda mais duros para a realidade de quem não tem acesso aos serviços de saneamento. O simples gesto de lavar as mãos com água e sabão, uma regra básica de higiene, mas que poderia salvar vidas diante da doença da Covid-19, não foi possível para 2,2 bilhões de pessoas que vivem sem acesso regular à água potável no mundo. A ausência de serviços de saneamento tem efeito perverso sobre a saúde pública e, mesmo considerando que esses impactos ameaçam a todos, são os pobres os mais atingidos.
O Dia Mundial da Água é fundamental para focar a atenção a um direito humano essencial: o acesso universal aos serviços de saneamento, a ser garantido pelas autoridades públicas. Saneamento é mercado cativo, todo mundo precisa desse serviço. Ele não permite a livre concorrência. Diferentemente da telefonia, por exemplo, ninguém pode ter mais de uma torneira em sua casa para escolher de qual empresa vai receber água ou por qual válvula vai escoar seus esgotos. É exatamente a natureza desse serviço que o torna público. Todo o recurso das tarifas precisa voltar para o setor, alimentando novos investimentos, num ciclo harmonioso.
Referências
1-Relatório do BID: “Em direção ao uso sustentável dos recursos hídricos”. Publicado em agosto de 1995, nos Estados Unidos. Fonte de consulta: matérias publicadas pela Folha de São Paulo em 1º de outubro de 1995 e 7 de fevereiro de 1996.
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/01/mundo/10.html
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/2/07/brasil/38.html
2-Relatório do Transnational Institute, publicado em 2017. Remunicipalización-Cómo ciudades y ciudadanía están escribiendo el futuro de los servicios públicos.
https://www.tni.org/en/publication/reclaiming-public-services