Em meio a uma capital novamente submersa, com pessoas surpreendidas por bueiros transformados em gêiseres no meio de ruas que nunca haviam alagado, o Coletivo Engenheiros e Técnicos de Saneamento Ambiental se reuniu, na tarde desta quinta-feira, 23 de maio, para esclarecer à sociedade porto-alegrense as razões da enchente e, principalmente, como evitar que isso se repita. Participaram da coletiva de imprensa, que está disponível em vídeo no YouTube, os engenheiros Augusto Damiani, ex-diretor-geral do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) e do Departamento Municipal de Água e Esgotos (DMAE) e conselheiro da Associação dos Técnicos de Nível Superior de Porto Alegre (Astec); Vicente Rauber, ex-presidente da Companhia Estadual de Engenharia Elétrica (CEEE) e ex-diretor-geral do DEP; Nanci Giugno, membro do Conselho Consultivo do Senge-RS; Carlos Bernd, ex-diretor de Obras e de Projetos do DEP e diretor Financeiro da Astec; e Darci Campani, ex-diretor do Departamento Muncipal de Limpeza Urbana (DMLU). Eles integram o grupo de 42 engenheiros e técnicos que, com base na larga experiência na lida com o Sistema de Proteção Contras as Cheias de Porto Alegre, subscreveu o manifesto direcionado à população de Porto Alegre, que foi elaborado com a contribuição de ex-diretores, técnicos da prefeitura, especialistas e estudiosos da área, dentre outros. Em 13 de maio, a divulgação do documento foi o primeiro alerta de que o sistema proteção contra inundações de Porto Alegre é robusto, eficiente e fácil de operar e manter – mas falta manutenção permanente, em especial, das comportas.
O manifesto aponta medidas emergenciais que, de acordo com Vicente Rauber, já deveriam ter sido adotadas pela prefeitura.
“Tapar os vazamentos, fechar os furos das comportas, com o uso de mergulhadores; fazer o necessário para secar as casas de bombas e colocar novas bombas quando necessário. Quando as águas baixarem, voltar a investir imediatamente em saneamento”, recomendou o engenheiro. Segundo Vicente Rauber, desde 2021 foram feitos investimentos no sistema, mas nenhum em manutenção ou nos consertos necessários.
Na oportunidade, o engenheiro Augusto Damiani esclareceu a afirmação do manifesto de que o sistema adotado por Porto Alegre “é robusto, eficiente e fácil de operar e manter”.
“Por que a gente diz isso? Porque ele é um sistema tradicional, modelo holandês, que a Metroplan desenvolveu para a Região Metropolitana. Nós temos uma barragem que impede a água de entrar – o muro, os diques, são barragens. E temos um sistema que, quando a barragem impede a água de entrar, joga a água para o outro lado. Muito simples: tradicional, clássico e eficiente, porque é fácil de fazer. É só manter as casas de bombas funcionando que elas vão pegar a água de dentro da cidade e jogar para fora. Mas, para isso, aquela barreira que é a barragem precisa funcionar, ela não pode deixar a água entrar, porque esse sistema de bombas não é para pegar a água do lago, a água que está sendo barrada no barramento, e botar para fora. Para isso tem as barragens, tem os diques”, explicou Damiani, sobre o sistema que conta com 14 comportas e 23 casas de bombas, cujo funcionamento se assemelha ao do sistema bastante simples usado para irrigar e secar a lavoura de arroz.
“É um sistema muito simples, que está sempre funcionando, não é ocasional. Tem outros sistemas? Tem. Tem sistema em Veneza, que custa R$ 5 trilhões e gasta R$ 2 bilhões por ano para operar, mas tem um sistema muito simples, que é o holandês, que é o nosso. A gente não precisa (…) Tem que gastar dinheiro onde precisa. Falta moradia, falta um montão de coisas, tem gente em áea de risco, tem gente na beirada do rio. Não podemos nos dar ao luxo de comprar um modelo de R$ 1 trilhão só para abrir e fechar comportas. Nós temos é que nos dar ao luxo de fazer nosso modelo funcionar”, finalizou Damiani.
Quanto ao novo alagamento ocorrido nesta quinta-feira (23/05), em que os bueiros jorraram água como se fossem gêiseres, em diferentes pontos da cidade, o engenheiro Carlos Bernd esclarece que são problemas de muito fácil resolução: bastaria recolocar parafusos e borrachas para manter a vedação necessária.
“O que deveria ter sido feito nessas tampas de ferro fundido com buracos de parafusos que estavam abertos? simplesmente, comprar parafusos, comprar borrachas e gfazer esse trabalho de recolocação dos parafusos com borrachas de vedação. Qualquer chefe de seção – eu fui chefe de seção, por vários anos, eu estou habilitado a fazer isso. Eu faria isso, se fosse na minha seção. Eu não sei porque não fizeram. Outra coisa: tem que ter o monitoramento da chefia. Se o chefe de seção não viu, o superior tem que avisar. Ele tem que conhecer o serviço também”, sublinhou o diretor da Astec, salientando, ainda, que a casa de bombas 13 também tinha uma comporta que precisava ser parafusada – outro procedimento simples, como a contratação de um serviço emergencial que deveria ter sido contratado, em setembro do ano passado, para corrigir o problema.
Além da manuteção regular, outro aspecto preventivo importante reside na gestão das bacias hidrográficas. Conforme Nanci Giugno, que atua no Conselho Consultivo do Senge-RS, 80% da água que chega em Porto Alegre vem do delta do Jacuí, onde desaguam os rios Gravataí, Sinos, Caí, acumulando mais de um terço das bacias hidrográficas do estado, o que demanda um gerenciamento das bacias.
“Nós temos, sim, um sistema de gerenciamento de recursos hídricos. Foi o primerio do País – a nossa Lei das Águas. E não foram implantados os instrumentos e nem as instâncias de decisão, como os comitês de bacia hidrográfica, a agência de bacias hidrográficas. O Senge tem assento em 21 dos 25 comitês existentes, que são os parlamentos das águas. Trabalhando a bacia hidrográfica, teríamos evitado os escorregamentos lá na bacia do Taquari-Anta, no Caí, e chegaria água com uma velocidade menor”, enfatizou a engenheira.
Nanci Giugno destacou, ainda, que o documento valoriza os servidores do DMAE, que estão fazendo o todo o possível, embora não tenham as condições necessárias.
“Pode-se dizer que são verdadeiros heróis”, sublinhou ela.
Darci Campani, ex-diretor-geral do DMLU, que atua no comitê Tramandaí, cujo plano de bacias hidrógráficas está aprovado há vários anos, denuncia que, diferentemente do que diz o governador Eduardo Leite, sequer a reduzidíssima contribuição que era feita pelo estado para custeio do funcionamneto dos comitês foi mantida.
“A gente vê a declaração formal do governador de que o sistema está. Não! o sistema não está operando. Se gastou bastante dinheiro para fazer esses planos. Esses planos não saem de graça – dinheiro público que nós pagamos em impostos – e, simplesmente, foram largados numa gaveta. E alguns outros até, mais complicados, que não foram largados na gaveta, foram simplesmente rejeitados os trabalhos dos técnicos da Fepam. Eles fizeram um projeto, esse projeto foi lançado, entrou na página da Fepam, ficou alguns dias e tiraram da página. Agora tem um outro lá que está sem assinatura (…) porque os técnicos pediram para retirar os nomes deles”, conta o engenheiro, que também corrobora a posição dos colegas sobre a necessidade de manutenção dos esquipamentos do sistema de proteção, acrescentando que a manutenção não deve ser apenas física dos equipamentos, mas também de gestão. A ocupação das áreas de várzea, como ocorreu em Eldorado d0 Sul, as condições de impermeabilização do solo, com edificações e aterramento em áreas de várzea e banhado, como está ocorrendo com o rio Gravataí, têm consequências desastrosas.
“Qual é a função do banhado? A funçao do banhado é segurar a água. (…) Todo o Humaitá foi aterrado, toda a zona norte foi aterrada, não tem onde ir a água. Desculpem os colegas da imprensa, mas, constantemente dizem ‘a água invadiu a cidade.’ Não! A cidade invediu a água. A água só está pedindo seu espaço de volta. Outra coisa: tem que ter história. Empresas privadas competentes, com certeza existem, mas, história, conhecer o sistema de drenagem, como ele opera, como funciona, não pode ser um funcionário, um trabalhador que hoje é contratado, amanhã é demitido, depois de amanhã demite outro. Tem que ser um funcionário público com história, que saiba o que está fazendo, que saiba toda a história do sistema. (…) A gestão tem que ser pública!” enfatizou Campani.
A abertura do evento foi conduzida pelos engenheiros Nanci Giugno e Carlos Comassetto, que integra o Conselho Nacional das Cidades e é vereador na atual legislatura. Eles apresentaram o presidente do Senge-RS, Cezar Henrique Ferreira, que se solidarizou com as vítimas atingidas pela enchente, entre elas, as de diversas famílias de funcionários e diretores do sindicato. A entidade está fechada, ocupando-se de acolher e auxiliar quem precisa. Mesmo assim, dada a importância do tema a ser tratado, cedeu prontamente o espaço solicitado pelo Coletivo de Engenheiros e Técnicos.
“Esperamos que tudo isso sirva para a gente, ali adiante, construir um mundo melhor, aprender mais uma vez com essa tragédia. Que a sociedade busque se organizar para prevenir essas situações e enfrentar melhor quando elas ocorrerem. No nosso ponto de vista, alguns pontos são fundamentais. Não é mais possível que a gente não reconheça o aquecimento global. Existem trabalhos, nós já debatemos isso no Senge com a sociedade – as mudanças climáticas -, é comprovado. Todo um debate tem que ser feito para que se busque entender a composição das nossas bacias hidrográficas, a fim de que se organize melhor a utilização dos espaços urbano e rural. Alguns temas se tem que retomar, como a questão da flexibilização da legislação ambiental. Nós temos que cuidar melhor isso”, alertou o presidente do Senge-RS.
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A entrevista alcançou grande repercussão na mídia, tanto em veículos do estado como de abrangência nacional. Confira nos links a seguir.
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